terça-feira, 11 de março de 2008

RAPE - Ritmo Amor Poesia e Enfrentamento


Nelson Maca · Salvador (BA) · 8/2/2007

O rap instala um conflito na tradição sonora do país. Tanto em sua estrutura musical como na linguagem verbal a adoção de traços polêmicos torna pública a transformação ocorrida na postura da juventude negra, que assina sua própria representação, assumindo a tensão social como alternativa artística possível e urgente. Nega duplamente a cordialidade construída e sustentada pelo mito da democracia racial brasileira, herdando elementos do Black Power e agindo de forma a aproximar-se da concepção de Malcolm X e dos Panteras Negras, eleitos como modelos transgressivos.
Essa tensão não faz parte do cotidiano do negro brasileiro que, de forma geral, ainda vive o sonho do interacionismo, buscando se adequar na realidade nacional, intermediado pela ideologia do branqueamento que exige e sustenta sua imagem manemolente e cordial. Estereótipo que Frantz Fanon destaca ao comprovar que a presença de negros sorridentes em anedotas e peças publicitárias é uma exigência do branco colonizador. O mecanismo da cordialidade promove a “integração harmoniosa” do negro numa sociedade que lhe é adversa. Imagem e comportamento calcados na ausência de sinais de revolta.
A discussão das questões raciais alcançou um grande grau de elaboração no Brasil, porém ficou restrita a militantes que, na maior parte dos casos, deixam de pisar na lama da favela, ou à intelectualidade acadêmica. Enquanto população, o negro continua no hall da miséria e na sala da alienação. Na maioria dos casos, encontra-se integrado nos valores do outro e corresponde àquela alegria abordada por Fanon como mecanismo de preservação da espécie.
O rap inverte esta postura, elegendo o enfrentamento verbal violento como pulsão artística e social. Antes de ser local, o problema do negro é diaspórico, por isso a virulência do rap encontra-se mundializada. A exemplo do rock e do reggae, o rap tornou-se uma linguagem sem fronteiras. Extrapola os limites nacionais e adquire a “cor preta e pobre local” de cada sítio onde se instala. Logicamente, com essa abertura, comunidades não negras se apropriam do rap como protesto social, fruição estética ou mercadoria de consumo. No caso específico do contexto da negritude, articula universais como as reminiscências da transplantação violenta, a experiência da escravidão, o presente de miséria, a violência policial, o extermínio dos miseráveis, a discriminação racial e o racismo.
Para os interesses imediatos dos jovens afro-descendentes brasileiros, o rap é mais familiar que os romances eruditos ou as novelas televisivas. Há na postura dos rappers uma sisudez marcada pela ausência de sorrisos conciliadores e por uma rígida e agressiva gesticulação. Tranqüilidade, adequação e alegria são o que a sociedade brasileira ainda espera dos negros bons, mesmo em tempo de cotas. Na contramão desta expectativa, o rap estabelece, conscientemente, uma postura calcada em atitudes descolonizadas. As letras e a postura dos artistas do hip hop se fundem na tentativa de anulação das fronteiras entre a realidade e sua representação. Estetiza a consciência adquirida no contato diário como o “pesadelo periférico” de sua vizinhança pobre, preta e violenta. Instala um discurso que, se por um lado, se apresenta como fala do coletivo, por outro, centra-se no “negro drama” de cada um.
Na Bahia, também, elevam-se vozes não-cordiais que agridem frontalmente o mito da baianidade feliz desde e para sempre. Oferece uma imagem do negro oposta à veiculada em peças publicitárias para escamotear as mazelas e atrair turistas. O rap soteropolitano instala um “mau-cheiro” no jardim das musas perfumadas da axé-music.
Dedicado aos companheiros da Blackitude: Afrogueto, Elemento X, Quilombo Vivo, O Clan, Turbilhão Urbano, Independente de Rua, Ana Cristina Pereira, Ricardo Soares, Lucinha Black Power, Luíza Gata, e, especialmente, aos incríveis parceiros DJ Edilson, Dj Joe, Penga, Fábio Sanguessuga, Robson Sem Acordo e Rangel Santana, meu texto quer ser, apenas, o anúncio que o hip hop da Bahia prepara o bote da serpente de várias cabeças que cresceu na surdina enquanto o país só tem olhos para nos estereotipar, continuamente, como a versão negra da visão paradisíaca sensual inaugurada, aqui mesmo, pelo colonialismo de Pero Vaz de Caminha e seus quarenta ladrões.


tags: Salvador BA cultura-e-sociedade rap musica poesia enfrentamento hipho comunidade

Um comentário:

Nelson Maca disse...

Pô, Fuzzil, que honra estar aqui!!
Obrigado pelo espaço, irmão!

Nelson Maca - Blackitude.BA